À margem e, ao mesmo tempo, totalmente envolvida com a indústria cultural, um novo tipo de literatura encontrou na internet o espaço perfeito para proliferar. Se você só lê livros em papel, é bem capaz de nunca ter ouvido falar dela.
Os números impressionam. Você digita fanfiction no Google e em menos de um segundo o buscador lhe devolve 701.000 páginas. Aí você pesquisa somente nas páginas do Brasil e aparecem 9.530, o que já facilita um pouco para quem ouse se debruçar sobre esse universo que ganha mais e mais adeptos e já foi até tema de um livro acadêmico. Mas afinal, o que é fanfiction, fenômeno literário que se prolifera indiscriminadamente pela internet, à margem da indústria cultural?
A origem situa-se ainda no final dos anos 60, com os fãs de Jornada nas estrelas e, na década seguinte, com a série de George Lucas, Guerra nas estrelas. As comunidades de fãs (fandom) começaram a criar continuações e histórias paralelas inspiradas em seus ídolos preferidos, publicavam em fanzines e apresentavam estas histórias em reuniões esporádicas. A mania encontrou na internet o melhor suporte para proliferar e hoje, se best-sellers comandam a cena da fanfiction (Harry Potter e Senhor dos anéis principalmente), é possível encontrar quem se dedique a continuar as obras de Shakespeare, Charles Dickens e Agatha Christie.
Uma aluna despertou o interesse de Maria Lucia Bandeira Vargas sobre o tema, e a professora decidiu investigar o fenômeno em sua dissertação de mestrado em Letras, pela Universidade de Passo Fundo, que acaba de virar o livro, O fenômeno fanfiction: novas leituras e escrituras em meio eletrônico (UPF Editora). Segundo ela, a fanfiction invadiu o Brasil no rastro do fenômeno do bruxo criado por J.K. Rowling. "Pelo que pude compreender no meu estudo, os fãs de Harry Potter pertencentes a certa camada da classe média (com acesso a internet e cursos de inglês), naturalmente utilizaram a rede em busca de mais novidades sobre o assunto e tropeçaram nas fics em língua inglesa. Eles se interessaram pela prática e passaram a desenvolvê-la em português."
O que chamou a atenção da pesquisadora foi o fato de que a maioria dos autores e leitores de fics (como são conhecidas as estórias criadas pelos fãs) é formada por mulheres jovens e adolescentes, algo que ela pretende investigar, possivelmente no doutorado. Além disso, ela se interessou ainda pelas fics de conteúdo erótico, muitas vezes, homossexual. Rowling não gosta muito de ver seu bruxinho crescido envolvido em romances com seus amigos, mas também seria algo arriscado enfrentar os fã e tomar medidas legais contra os autores de histórias slash (que trazem cenas de homossexualismo), inclusive nas fanfics escritas em português.
As corporações mostram-se receosas em enfrentar os maiores responsáveis pelos lucros de seus blockbusters. Até porque os escritores de fanfics argumentam que seu trabalho funciona como promoção gratuita, e eles mesmos não lucram nada com as histórias. Mais do que tolerar, há empresas que as estimulam, como a Paramount, que permitiu a publicação de duas séries de antologias de fanfics de Jornada nas estrelas, selecionadas em concurso. Outro caso é o da Lucasfilm que estimula a produção de filmes pelos fãs e disponibilizou uma pequena biblioteca com efeitos sonoros. Muitos escritores não lêem as fanfictions, ironicamente com medo de não serem acusados de roubar as idéias de seus fãs, mas não deixam de encorajá-los. Mas há também os que são contra, como a escritora Anne Rice, autora de Entrevista com o vampiro, que proíbe qualquer utilização de seus personagens e de sua obra. A justificativa é, além de proteger seus direitos autorais, prevenir qualquer diluição, saturação ou distorção do universo e das pessoas retratados em seus livros.
Se esta prática pode levar os autores de fanfics a desenvolverem textos inéditos e originais, ainda é cedo para afirmar, mas, segundo Maria Lúcia, vários autores manifestaram o desejo de se tornarem escritores um dia e encaram as fics como uma espécie de "treinamento" para chegarem lá.
Mas como toda novidade, as fanfictions também enfrentam preconceitos. Há quem veja ali uma arte menor, uma replicação a mais dos tentáculos da cultura de massa, um balaio de gatos. "De maneira geral, por construir suas histórias tendo como base um produto considerado de mau gosto, vulgar, ou no mínimo, menos sofisticado, o autor de fanfiction pode se sentir compelido a não divulgar seu trabalho fora do fandom onde é reconhecido, nem mesmo dentro dos meios escolares, para não correr o risco de ser acusado de mau gosto. Isso acontece porque os textos que servem de base para essas recriações, geralmente pertencem à cultura de massa, cujo conteúdo não é sancionado pelos meios escolares, embora seja consumida, de forma muitas vezes acrítica por toda a comunidade escolar, cotidianamente", afirma a pesquisadora.
Outros críticos implicam com a linguagem que vem surgindo com a internet, que estaria mutilando a norma culta, mas isso não diz respeito às fanfictions, que procuram respeitar as normas e conta com revisores de gramática, estilo e adequação do texto aos detalhes da obra original. "A linguagem das fics difere daquela utilizada em alguns blogs, no SMS ou em salas de chat. Há uma preocupação com a correção da linguagem, com a qualidade da trama e com a caracterização dos personagens que é rara fora do contexto escolar, por isso, a existência dos beta-readers, revisores de texto tanto do ponto de vista da estrutura, como da qualidade literária. O curioso é que esses revisores são voluntários e, muitas vezes, adolescentes que usam de suas horas de lazer para ajudar a aprimorar os textos de outros jovens", afirma Maria Lúcia.
Produto derivado da cultura de massa ou não, o certo é que não é nada desprezível o alcance das fanfictions e, de qualquer maneira, volta-se a priorizar a leitura e a escrita em um meio que seria dispersivo com a internet. Mas que seria interessante ver por aqui o mesmo que já acontece lá fora, com histórias derivadas de Shakespeare, Charles Dickens, HG Wells, Scott Fitzgerald, Agatha Christie, George Orwell, Jane Austen e companhia, isso seria. Maria Lúcia afirma que ainda não encontrou textos inspirados em nossos literatos, mas quem sabe um dia. "Fics sobre Dom Casmurro, por exemplo? Bem que eu gostaria de ler o ponto de vista de Capitu..."
terça-feira, 20 de janeiro de 2009
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário